quarta-feira, 2 de maio de 2007

Diário IV Numa Rua de Lisboa...

Lisboa acorda cedo, antes dela eu! Ambos gostamos das primeiras luzes da manhâ.
A cidade perfuma-se com os ventos atlânticos, os bairros vestem-se cor da fruta das lojas de frescos. O Sol, reflectido no largo estuário do Tejo, devolve a luz à cidade casada com nuvens ora muito brancas ora prateadas...

Acordo cedo, a manhâ impele-me a grandes caminhadas até ao local onde trabalho. Por ruas becos e travessas vou deixando o meu olhar atento. Entro em todas as mercearias, gosto de ver o que cada uma propõe para a mesa dos lisboetas. Compro sempre fruta, legumes e queijos, peço que me dêm informações culinárias para cozinhar determinado ingrediente. Recebo sorrisos acolhedores, receitas simples e apetitosas. Sigo o meu caminho, continuando a observar talhos, casa de fruta, peixarias, e a grande variedade de pequenos negócios que a cidade oferece a quem nela vive.

Intrigava-me uma pequena loja, toda em mármore com um balcão branco da mesma pedra, que nada vendia, mas que desde cedo tinha as portas abertas. Atrás do balcão uma senhora de cara redonda brilhante acariciava um gato de três cores, ou seja uma gata, pois só as gatas são tricolores.
Normalmente, pouco antes das oito da manhã, passava pela rua dessa inigmática loja, nunca lá vi nenhum cliente, nem sequer nada que pudesse ser vendido... Só os mármores muito limpos, já gastos, a senhora de cara brilhante e a gata que ou estava sentada à porta, ou ao colo da senhora que por vezes se sentava num banquinho junto a uma montra de vidro reluzente.

Por diversas vezes me interroguei sobre o negócio daquela criatura. Que venderia ela ?

Numa manhâ chuvosa de Abril, entrei na loja a fim de saciar a minha curiosidade. Saudei a senhora, fiz uma longa festa à gata. Enquanto acaciava a gatinha a senhora perguntou-me se tinha sido alguém de confiança quem me mandara ali. Respondi-lhe que sim, que fora uma amiga e que me dera as melhores referências... De forma enérgica e sem vacilar, a senhora, de faces brilhantes, informou-me que só à quinta-feira... que era preciso encomendar as quantidades. Fiquei atónito, sem saber o que dizer! Para ganhar tempo, peguei na gata, quis saber o seu nome, enquanto isso a proprietária da misteriosa loja perguntou-me se eu queria das brancas ou das castanhas... Tudo me passou pela cabeça... dar-se-ia o caso daquela senhora de meia-idade, lustrosa e de ar digno ser uma passadora de substâncias ilícitas ? Respondi, ao calhas... queria
da branca, ao que ela me perguntou quantos quilos. Quilos!! Não era possível! Ela vendia heroína e cocaína aos quilos ??!! Não respondi. Olhei-a nos olhos, continuando com a gata ao colo. A senhora não desistiu , informando-me que as mais pesadas eram menos tenrinhas e que tinham que ir à panela de pressão. Disse-lhe que não tinha tal panela, então ela decidiu que eu passaria na quinta-feira e levaria uma de cerca de dois quilos.

Saí da loja sem saber o que acabara de encomendar. Era terça-feira, durante dois dias aquela senhora e a "coisa" de dois quilos que iria buscar na quinta-feira não me saiam da cabeça...

No dia combinado, entrei na loja, fui recebido pela gata e pelo sorriso da senhora de pele brilhante que tirou de trás do balcão um saco de palástico, para além do preço informou-me que tinha ovinhos e tudo... dava para fazer uma rica canja...!

D. Matilde, hoje conheço-lhe o nome, somos amigos, negoceia aves de capoeira. Tem uma pequena quinta para os lados de Sintra onde cria as mais saborosas e saudáveis galinhas. Vende-as só a clientes certos, é proibido vender animais abatidos sem vigilância veterinária e sem terem sido alimentados com hormonas e antibióticos.

Todos os anos, pelo Natal, D. Matilde cria um peru só para mim!
Chama-me menino. O ano passado, pelo meu casamento, ofereceu-me uma panela de pressão!

terça-feira, 24 de abril de 2007

Diário III O Milagre...


A noite caía por perto... não na distância contável em metros que nos separa da porta do quarto quando estamos sentados na cama a comtemplar a alvura do tecto, mas perto, mesmo perto de um pensamento. Era aí que a noite caíra.

Quando anoitece num lugar perto do pensamento, abrimos muito os olhos, concentramo-nos no essencial e entregamo-nos ao sono. Local onde permaneceremos um dia sem constatarmos o Milagre diário de acordar...

Acordamos todos os dias , desvalorizamos o mistério, benção dessa acção!

Ao longo da vida vamos coleccionando diversos acordares. Quando compramos uns dias de férias em África, ou noutro qualquer destino, o que nos é proporcionado, na verdade, é o facto de irmos acordar em lugares diferente da nossa cidade...

Acordamos sozinhos, bem ou mal acompanhados, ao lado do gato que se enroscou em nós, ao lado do cão que dorme no tapete... Enquanto crianças alguns acordam ao lado dos irmãos com quem partilham o quarto. Quando mais pequenos acordávamos no berço do quarto dos nossos pais... Já acordámos na praia, junto ao mar ou nas dunas, de manhã ou ao entardecer. Debaixo de uma árvore, ou com a boca na areia, acordámos também no meio de algumas aulas, no carro, comboio ou avião...

Alguns quando acordam parecem zombis, o Milagre de acordar demora tempo a abandoná-los, outros saem do sono com ligeireza e depois de acordarem estão acordados! Prontos para voltar a adormecer quando a magia se desvanescer...
As crianças acordam, não tantas vezes como deviam, no colo dos pais, dos avós ou dos irmãos...

Os mortos que não morreram acordam nas morgues, alguns doentes nos hospitais...
Os velhos acordam várias vezes por dia, abandonados à solidão de acordarem tristes...

Há os que acordam contrariados, sabem que os espera um dia agitado, ou porque queriam saber como acabaria o sonho interrompido pelo Milagre.

Alguns acordam no fresco das igrejas. No decorrer de um concerto, durante um filme, ou mesmo de uma peça de teatro. Acordam também a meio da leitura, em frente a um computador ou televisão, sentados na sala de espera de um Centro de Saúde ou dentista...

Acordar tem sempre algo de surpreendente, de futuro, de magia e de mistério. De encantamento e de vida... Milagre!

Reescreva-se então o texto: No princípio era o Verbo e o Verbo acordou e com Ele acordaram todas as coisas adormecidas na memória criadora de Deus...

Nada poderia existir se o Verbo ainda dormisse e não tivesse nunca acordado para o Milagre da Criação... da Vida... do Universo...

Os olhos do Senhor Deus acordaram, nessa manhã criou-se o acordar de todas as coisas, as visíveis e as invisíveis.... assim se instaurou o Milagre por toda a Eternidade...mesmo quando esta parece adormecida...

H. Levy

sexta-feira, 20 de abril de 2007

Feminino Muito Plural -- Virgínia Quaresma

Virgínia Quaresma nasceu em Elvas em 1882 e faleceu em 1973.

Virgínia Quaresma foi a primeira mulher a exercer jornalismo em Portugal.
Foi colaboradora muito activa nas redacções dos jornais O Século e A Capital. Fundou a primeira agência de publicidade no jornalismo.

No período que se seguiu à Implantação da República até ao Movimento de 28 de Maio de 1926, esta jornalista distinguiu-se em importantes reportagens de teor politíco e social.

Durante vários anos trabalhou no Brasil, tendo colaborado no Correio Português e em A Época . Assinou artigos, crónicas e reportagens que tiveram grande repercussão no Brasil ao ponto de lhe ser atribuída a distinção de Cidadã Carioca Honorária.

Virgínia Quaresma foi também das primeiras mulheres a licenciarem-se pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.

Foi condecorada com a Ordem de Santiago pelos serviços prestados ao país durante a I Guerra Mundial.

Feminino Muito Plural -- Constança ( ? )

Durante vários séculos chegaram a Portugal negros que vinham das costas de África.

Eram trazidos por traficantes de escravos que depois os negociavam na capital e um pouco por todo o país.

Lembremos uma figura de mulher africana cuja lenda manteve a sua memória até aos nossos dias...

Constança viera ainda menina das terras de África. Trabalhava como escrava em casa de uma família abastada no bairro da Ajuda. Com o tempo transformara-se numa mulher de rara e exótica beleza, de grande bondade e inteligência.

A sua graciosidade natural e elegância desafectada tornavam-na muito atraente, produzindo grande inveja em muitas meninas brancas educadas.

Um jovem aristocrata conheceu Constança e sentiu forte desejo de com ela conviver intimamente. Rodeou-a de promessas e carinhos. Deslumbrou-a com a perspectiva de um futuro de liberdade e felicidade. A ingenuidade de Constança, ignorante das maldades do mundo masculino, levou-a a deixar-se seduzir por esse rapaz, sem escrúpulos, que somente desejava a satisfação de um apetite depravado.

Algum tempo passado, já abandonada pelo amante, Constança deu à luz o fruto do seu troturado amor. A criança foi-lhe roubada e Constança nunca mais a voltou a ver, acabando por enlouquecer com tamanha dor!

Era agora um farrapo humano e deambulava ensandecida pelas ruas da freguesia da Ajuda em Lisboa.

A sua triste história chegou até aos nossos dias, tendo um edital camarário, de 18 de Dezembro de 1989, denominado, em sua memória, uma rua da mesma freguesia com o nome: Rua da Preta Constança.

segunda-feira, 9 de abril de 2007

Feminino Muito Plural / Carolina Ângelo

A primeira mulher a votar no quadro dos 12 paises europeus que vieram a constituir a União Europeia.


Carolina Beatriz Ângelo nasceu na Guarda em 1877 e faleceu na mesma cidade em 1911.
Carolina Ângelo era uma militante republicana muito activa. Ela e Adelaide Cabete fizeram, pelas suas mãos, a bandeira que viria a ser hasteada em 5 de Outubro de 1910 na Câmara Municipal de Lisboa.

Carolina Ângelo formou-se em medicina na Escola Médico-Cirurgica de Lisboa. Foi a primeira mulher a praticar cirurgia em Portugal.

Exerceu o cargo de Presidente da Associação de Propaganda Feminista. Presidiu também à Liga Republicana das Mulheres Portuguesas. Dedicou grande parte da sua vida à luta pelo direito das mulheres e sua emancipação.

Ao tempo só os chefes de família podiam votar nas eleições para as Câmaras Municipais. Carolina Ângelo que era viúva e mãe considerou-se como chefe de família e pediu a sua inscrição nos cadernos eleitorais, o que lhe foi negado. Mais tarde, depois de grandes batalhas jurídicas, os tribunais concederam-lhe o direito de votar. Tornou-se, assim, a primeira mulher a exercer o direito de voto em Portugal em 28 de Maio de 1911 nas eleições para a Constituinte.

sexta-feira, 30 de março de 2007

Feminino Muito Plural -- S.A.R. Dona Maria Benedita

A Princesa Dona Maria Benedita nasceu em Lisboa em 1746 e faleceu em Lisboa em 1829.

Dona Maria Benedita era a quarta filha do Rei D. José e da Rainha D. Mariana Vitória de Bourbon. Teve uma esmerada educação. Ddicou-se à música, canto, pintura, desenho e poesia. Era fluente em castelhano, francês, italiano e inglês.
Aos trinta e um anos casa em Lisboa com o seu jovem sobrinho o Príncipe D.José, presumível herdeiro do trono de Portugal, que tinha dezasseis anos, tendo vivido durante onze anos profundamente apaixonada pelo marido que morre em 1788. Depois de viúva ficou inconsulável e passou a fazer uma vida solitária e comtemplativa.
A Princesa Real comprou uma quinta em Runa na qual mandou edificar o Asilo dos Inválidos Militares. Foi a forma que encontrou de homenagear a memória do seu amado marido que tinha uma predilecção pelos assuntos militares.
No seu testamento deixou importantes legados para a sustentação do Asilo Militar de Runa que ainda hoje cumpre a sua missão.

Feminino Muito Plural -- Maria Isabel Aboim Inglês

Maria Isabel Aboim Inglês nasceu em Lisboa em 1902 e faleceu na mesma cidade em 1963.

Maria Isabel Inglês foi uma lutadora anti-fascista, membro da Comissão Central do Movimento de Unidade Democrática M.U. D. Directora de um colégio de ensino particular, criado em 1949.
Maria Isabel era professora da Faculdade de Letras de Lisboa. Leccionou História Antiga e Moderna e Psicologia Exprimental.
Foi vítima de várias prisões arbitrárias, por diversas vezes barbaramente torturada pela plícia política do fascismo.
Esta corajosa anti-fascista era uma presença constante nas Jornadas de Luta contra o Fascismo e nas campanhas eleitorais para a Presidencia da República do Dr. Rui Luiz Gomes, do General Humberto Delgadoe e do General Norton de Matos.
Viúva, com cinco filhos, entregou-se sempre à luta pela liberdade, tendo levado uma vida de grande dignidade e coragem.

Feminino Muito Plural -- Mécia Mouzinho de Albuquerque

Mécia Mouzinho de Albuquerque nasceu em Lisboa em 1870 e faleceu na mesma cidade em 1961.

Mécia Mouzinho de Albuquerque foi escritora e poeta. Fundadora da Liga Portuguesa Contra o Câncro em 1931.
Mesmo depois da implantação da República, Mécia defendeu a Monarquia, tendo demonstrado grande coragem e lucidez.
Foi atacada e perseguida pelo jovem regime republicano. Fundou em 1915, juntamente com a Condessa de Ficalho e Constança Telles da Gama uma associação para ajudar e apoiar os monárquicos mais precisados de auxílio e vítimas das perseguições dos republicanos. Visitou presos políticos, tendo por isso passado por momentos muito difíceis, tendo sido vítima de várias perseguições.
Mécia Mouzinho de Albuquerque era uma personalidade de grande sensibilidade e cultura. Publicou várias obras em prosa e em verso, algumas das quais foram traduzidas para espanhol, francês, e marata. Colaborou em diversos jornais e revistas portuguesas e estrangeiras, assinando os seus artigos sob o pseudónio Zoleica.
Mulher de uma vasta cultura percorreu a Europa em digressões intelectuais e artísticas.
Era membro correspondente da Société de Gens de Lettres de France em Portugal.
Pela sua colaboração no jornal "A Voz" foi condecorada com a medalha de Mérito Cívil e de Artes e Letras.

quinta-feira, 29 de março de 2007

Feminino Muito Plural -- Adelaide Cabete

Adelaide Cabete nasceu em Elvas em 1867 e faleceu na mesma cidade em 1935.
Concluiu o Curso de Medicina aos 33 anos na Escola Médico-Cirurgica de Lisboa. Em 1900 defendeu tese de licenciatura que versava sobre a protecção às mulheres grávidas pobres.Na época era raro uma mulher cursar medicina.
A carreira de Adelaide Cabete inicia-se aos 23 anos, idade em que concluiu o exame da instruçao primária.
Médica de grande prestígio foi grande defensora das ideias repuplicanas, pondo sempre a ciência ao serviço das mulheres, das crianças e dos mais excuídos e despretegidos.
Em 1814 fundou o ramo portugês do Caucil of Women- Conselho Nacional das Mulheres Portugêsas. Era também representante da Aliança para o Sufrágio Feminino, cujo lema era " A Mulher quer os seus direitos para cumprir os seus deveres".
Participou em vários Congressos Internacionais Feministas em Roma, Paris,e Washington.
Organizou também Congressos em Lisboa relacionados com a temática da Educação e da Libertaçao da Mulher. Em 1928 organizou o 1º Congresso Abolicionista da Prostituição.

Feminino Muito Plural


Muitas foram, ao longo da História do nosso país, as mulheres que se distinguiram e contribuiram para o desenvolvimento da Cultura, da Ciência,da Cidadania, das Artes e das Letras em Portugal, mas nem sempre foram verdadeiramente reconhecidas e suficientemente divulgos os seus feitos.

Em Feminino Muito Plural encontrará alguns vultos femininos, pouco conhecidos, cuja memória e feitos pretendo divulgar em reduzidas sinópses.

A sociedade portuguesa do século XXI pauta-se, ainda, pelo enaltecimento dos feitos masculinos, votando ao ostracismo alguns dos nomes femininos que contribuiram para uma sociedade melhor, mais igualitária, justa e feliz!

Caso o leitor tenha mais informações, que ache pertinentes, sobre os nomes aqui retratados deixe-as nos "Comentários" para posteriormente serem juntas à postagem original. Muito obrigado e boas leituras...

H. Levy

quarta-feira, 28 de março de 2007

Yüan Mei



Muito estranho sempre me pareceu
Os homens adorarem um deus.
E a vida a esse deus dedicarem
E diante dele se curvarem.
Que os deuses são feitos por dentro
Da matéria da sombra ou do vento.


Yüan Mei
(1716-1799)

paisagem sem voz



a tua sombra recorta
no lado do mar o sol !
espaço é o teu desejo
acompanhado e só

místicos caminhos
vestem teus olhos
de linho branco
consentes e deus abençoa
nos campos o vizir do sonho

foste junco a oriente
rosas bravas de Pessanha
ao longe barcos de flores…

em todos navegaste a alma
deixaste âncora

resta-nos o murmúrio
nocturno da memória
lágrimas
que ensinaste a enxugar
sem mais podermos
escutar seu som !

pelo coração e pelos lábios
somos os mesmos
desdobrados em versos…
paisagem do ocaso
onde o sol agora vai
anoitecer os deuses calados
à espera da sede do amor perdido…

H.Levy

Nos Braços de Leonor /no seguimento de Sofá Verde-água



António Maria partira para a praia com a prancha de surf. No carro azul o cão já por ele esperava, sentado, muito direito, latindo baixinho. Pelo caminho António encontrou-se com Marcos, ambos tomaram café.
Conversaram sobre as previsõe do estado de mar para aquela manhã de sábado. António achou algo diferente em Marcos, parecia que os olhos estavam mais brilhantes, tinha um aspecto cansado mas feliz! Brincou, perguntando-lhe onde é que tinha dormido. Marcos respondeu-lhe que só estava ali porque já há muito tinham combinado ir surfar naquele dia, em que se previa boas ondas e correntes marítimas. Não fora isso estaria, àquela hora a tomar um agradável pequeno-almoço na mais bela esplanada da cidade.
António não sabia que havia sido uma mulher a causadoura do brilho matinal dos olhos de Marcos. António Maria deu uma palmada nas costas do amigo, passou a mão pelos seus cabelos desalinhados e segredou-lhe que gostava de o sentir feliz! Não houve mais nenhum comentário. No círculo de amigos, de ambos, constava a possibilidade de Marcos se sentir atraído por rapazes. Naquele Outono alguém o encontrara, diversas vezes, num bar de praia, que não frequentavam, a beber e conversar com um jovem desconhecido do grupo habitual... Fora esta suspeita que aproximara mais António Maria de Marcos.
António sentia uma enorme curiosidade pela vida amorosa do amigo, além disso achava-o belo... demasiado belo para não chamar a atenção de raparigas e de rapazes. Ele próprio se sentia encantado sempre que podia estar sozinho com Marcos.
Chegados à praia, onde por ser Inverno, havia ainda poucos surfistas, vestiram-se. O cão sempre a pedir que atirassem uma bola para a água que depois trazia diligente até aos pés de um dos rapazes.
Durante a viagem para a praia e enquanto nela estiveram não voltaram a falar da hipotética noite escaldante de Marcos. Já de volta à cidade, António, que durante toda a manhã sentira o seu amigo pouco concentrado, e o encontrara mais belo e sensual do que nunca, atreveu-se a comentar que a beleza e o espírito de Marcos deveriam atrair mulheres de todas as idades e talvez até alguns homens...
Marcos sorriu, docemente, para o amigo, com suavidade passou a mão pela cabeça de António respondendo-lhe que o encontro que tivera, na noite anterior, não fora como os outros.
Naquela noite a ternura e o desejo tinham-se encontrado com o Amor e com tudo o que este nos devolve e espera de nós... que estava feliz e incrédulo com o que se tinha passado. De início preparara-se para mais um joguinho de perigosa sedução, acabando por sentir a alma mais envolvida do que o corpo. Sentira o Amor de uma forma completamente nova que o envolvia na totalidade. Alma, espírito e corpo entregavam-se ao mesmo abraço. O Amor surgiara-lhe assim, pela primeira vez, Maior!
António Maria que escutara Marcos com atenção, estava agora com dificuldade em encontrar as palavras certas para o que queria perguntar e, de repente, de forma algo desconcertante, pediu a Marcos que lhe dissesse o nome de quem, por magia,lhe transformara a vida.
Marcos, carinhosamente, disse Leonor, beijou-lhe os cabelos,abraçou-a contra ele. Voltou aos sonhos que se têm quando somos felizes... Permaneceu aninhado no Amor sobre um sofá verde-água...
H. Levy

quarta-feira, 21 de março de 2007

À Ternura da Vicenta...


Escrever na primeira pessoa do singular pode parecer, por vezes, desadequado, pois, aparentemente, os leitores valorizam mais uma opinião indeterminada , mesmo quando esta é fruto dos sentimentos e do pensamento de quem escreve. Neste texto o uso da primeira pessoa do singular é imperativo!

Sempre me relacionei com os animais de uma forma particular. Desde cedo os entendi como seres com inteligência partilhada e com uma vida emocional muito rica e variada. Ainda pequeno, habituei-me a conviver com vários animais e com todos estabeleci relações fortes, familiares mesmo !
A amizade e dependência afectiva que estes seres nutrem pelos seus amigos humanos sempre me aproximou deles de forma muito terna e com vontade de com eles estabelecer uma relaçâo sólida.

Os animais são, para aqueles que os amam, amigos francos e honestos sempre dispostos em nos alegrarem os dias. Enchem o nosso coração de carinho e ternura, contribuem para que os nossos dias sejam mais felizes, pois são partilhados por estes amigos que nos obrigam a confrontarmo-nos com o melhor de nós próprios...

Numa madrugada, quase manhã, de Junho acordei angustiado, com o coração muito acelerado, inquieto. Por não perceber o que me estava a acontecer, achando muito estranho o estado em que me encontrava, desci ao andar de baixo da enorme casa onde vivia. Fui verificar se os meus três pequenos sobrinhos dormiam tranquilos nos seus quartos. Muitas vezes, enquanto pequenos, os meus sobrinhos passavam temporadas comigo no Alentejo. Mesmo depois de verificar que as crianças estavam bem, a minha agitação aumentava. Não era o sono dos rapazes que me trazia naquele estado de ansiedade. O que seria então ?

Vesti-me, sai de casa deambulando pela vila, ainda adormecida, apesar do sol já ter despontado e começar a espelhar-se na barragem do Maranhão. Andava sem destino como se conseguisse, desse modo, libertar-me da dor angustiante que de mim se apoderara.

Ao passar por um caixote de lixo pareceu-me ouvir um som conhecido. Abri a tampa do enorme contentor, aparentemente vazio, saltei lá para dentro, deparei com cinco gatinhos recém-nascidos que tinham sido afogados e atirados para aquele caixote imundo. Verifiquei que todos os gatos estavam já sem vida, excepto um cujo coração batia muito pausadamente. Saí do caixote , virei o gatinho de pernas para o ar e dei-lhe umas pancadinhas com o dedo.

Encaminhei-me logo para casa. Pelo caminho ia fazendo respiração boca-a-boca ao gatito que se debatia por sobreviver, ao mesmo tempo pensava que a razão da minha angústia era aquele gato bebé que precisava de ser salvo! Chegado a casa aqueci um saco de água quente, limpei muito bem o gatinho e encostei-o contra o meu peito nu. Assim nos deixamos estar os dois durante longo tempo... começava ali uma relação cujos laços eram a porópria vida que tentava devolver àquele desprotegido e infortunado animal.

Seguiram-se várias noites sempre interrompidas pelos biberons, cuidados e carinhos. Constantes idas ao veterinário. Assim, a Vicenta tornou-se numa gatinha muito bonita, simpática e feliz. A nossa amizade era imensa e ia crescendo à medida que o tempo passava. Havia entre nós laços fortíssimos e um entendimento constante e perfeito.

Durante treze anos a Vicenta acompanhou a minha vida. Veio comigo viver para Lisboa, abandonando a liberdade e a alegria de andar livre pelos quintais e telhados da vila onde nasceu. Habituou-se a viver num apartamento no centro da capital, contentou-se com uma varanda solarenga! O seu amor por mim era maior e mais importante do que o gosto de saltar muros, caçar insectos, adormecer em cima das árvores...

Entre nós dois foi-se estabelecendo, ao longo dos anos, uma sólida amizade, ambos tentavamos tornar felizes os dias um do outro...

À volta da mesa de jantar celebravamos a amizade, o encontro, a ternura que a todos unia, comiamos felizes e brindavamos com um excelente vinho que a Paula e o Carlos tinham trazido. O calor daquela mesa era a esperança, sempre renovada de voltar a acreditar no Homem. Discutiamos poesia, Deus e arte...

Enquanto isso a minha amiga Vicenta ,doente há vários meses, entregara-se, serenamente, a um sono eterno, deixando-me com uma maior angústia, dor e inquietação do que na madrugada em que a encontrei...

Obrigado Vicenta por teres feito de mim uma pessoa melhor!

H. Levy

segunda-feira, 19 de março de 2007

Sofá Verde-água


Finalmente conseguiu fechar a porta de entrada do prédio, deixar lá fora a chuva torrencial e o vento que a tinham acompanhado desde a estação do comboio até casa.

Deixou a pasta no chão da cozinha, pois estava encharcada, despiu-se e tomou imediatamente um duche quente. Aquele dia na escola tinha sido muito perturbador. No final do teste do décimo segundo ano, um dos alunos, ao entregar o trabalho, disse-lhe, com olhar penetrante, que tinha gostado muito dos textos que Leonor aconselhara a leitura, que gostaria muito de discutir com ela o texto relacinado com Ética e Moral na Europa...

Que bom ter um aluno interessado, pensou Leonor. Antes de propôr um encontro com Marcos na biblioteca da escola, ele já lhe tinha pedido o número de telefone e ela sem se aperceber do perigo, escrevera-o, quase automaticamente, numa folha de papel que discretamente passou para as mãos de Marcos. Este saira da sala em silêncio com uma alegria imensa que se apoderou de todo o seu corpo.

Saiu do duche, vestiu o roupão, ligou os aquecedores, acendeu um cigarro e deixou-se ficar sentada no cadeirão verde-água. Pensava no cabelo longo e brilhante de Marcos, no seu sorriso quase estonteante e no facto inédito de ter dado o seu contacto telefónico a um aluno... apagou o cigarro no cinzeiro a seu lado, levantou-se e pensou em preparar um jantar leve. Quando ja estava na cozinha o telemóvel tocou. Era Marcos. Pedia desculpa por estar a ligar, ela respondeu-lhe que não tinha importância e convidou-o a partilhar com ela o jantar leve. Ele aceitou entusiasmado, ela deu-lhe a morada e desligou não sem antes ter ouvido até logo... um beijo...!

Leonor preparou o queijo,dispôs as carnes frias num prato antigo, cortou o pão e escolheu uma garrafa de vinho tinto que não abriu, vestiu umas calças e uma camisola de lã azul.

A casa estava aquecida, Leonor tremia. Um tremor que vinha da impossibilidade de organizar o pensamento, que a percorria e deixava em todo o seu corpo ansiedade.Só assim poderia explicar a si própria , no dia seguinte,a razão que a levara a que tudo aquilo estivesse a acontecer!

Marcos chegou com olhar brilhante, sorriso rasgado, mãos ligeiramente suadas... Leonor estendera-lhe a mão, quando o recebeu á porta, mas ele já se adiantara e beijara-lhe uma das faces. Leonor começou a falar sem se ouvir, não conseguia deixar de falar... falava da escola , dos textos de filosofia, de alguns dos quadros que tinha em casa... do cadeirão verde-água que pertencera à sua avó, contando até que a avó, que tinha sido professora de música, fora encontrada morta naquele cadeirão. Explicava agora que a avó Angélica morrera durante o sono... Entretanto Marcos abrira a garrafa de vinho, servira dois copos e olhava Leonor, pediu-lhe que ouvissem um disco que trouxera com ele. Ela calou-se, mostrou-lhe o lugar da aparelhagem e beberam de um golo só todo o vinho dos copos.

Marcos voltou-se na direcção de Leonor segurou-lhe a mão e segredou-lhe que a desejava, abraçando-a com os seus braços longos e fortes. No sofá verde-água, Marcos despia e beijava Leonor que se entregava serenamente, enchendo-o de beijos até ambos adormecerem quando o dia já nascia na cidade.
H. Levy

sexta-feira, 16 de março de 2007

Angélica


As folhas pautadas, onde os alunos tinham inscrito os seus ditados melódicos, estavam espalhadas por toda a sala.

A janela ficara aberta durante a noite. Não era previsível que a madrugada trouxesse mais do que a brisa habitual aos primeiros dias de Verão.

Angélica entrou na sala, acabara de acordar com o barulho da janela a bater contra as velhas portadas. Os óculos tinham ficado na mesa de cabeceira. Dirigiu-se para a janela e sem ver o que estava no chão pisou, com as suas pantufas amarelas, as folhas espalhadas .... Fechou a janela, energicamente, e voltou a pisar alguns papeis enquanto se encaminhava para o quarto. Pôs os óculos, voltou à sala. Quando viu os trabalhos dos seus alunos espalhados e pisados Angélica abafou um grito de espanto e dor. Iniciou imediatamente a recolha de todas as folhas que o vento tinha espalhado pela sala.

Agora havia um montinho de papeis organizados e arrumados dentro de uma pasta em cima da mesa da sala, mesmo ao lado de uma antiga fruteira de vidro que há muito estava vazia.

Angélica sentou-se no sofá verde-água que estava encostado ao piano, o seu coração batia tumularmente agitado, tirara os óculos, passara as duas mãos pela cara, ajeitara o cabelo. Tentou levantar-se para abrir a porta ao gato Elias que miava a pedir companhia, mas voltou a cair no sofá para não mais se levantar.

H. Levy
Nota: A morte de Angélica, professora de música, deixou na comunidade,nos alunos, nos docentes e amigos , um grande constrangimento e saudade.

terça-feira, 27 de fevereiro de 2007

Nada na Vida é mais Santo...



às minhas
irmãs



nada na vida é mais Santo
que o aroma dos mares nocturnos...
o ritmo do Criador no acto da Criação...
a chama da ousadia de nascer em planícies geladas...

ouve meu coração azul
as preces a vida o sonho
a doçura da luz...

nada na vida é mais Santo
que o amor dos irmãos!

os amores partidos não mais voltarão
mesmo os amores contentes
que nascem no brilho afeiçoado dos olhos
partem um dia... e vão...

a cor rosea esplendor da alma
a cor das margens dos lagos ao poente
águas na Santidade do amor dos irmãos...

junto em mim orações
canto baixo adormecendo
palavras agitadas
que ligam lembraças...
lentas e caladas


nada na vida é mais Santo
que o milagre evocado vibrante
que de nós fez irmãos...

H. Levy

sexta-feira, 23 de fevereiro de 2007

De Maputo a Viena


Um rapaz tentava tirar alguns maços de tabaco de uma máquina encostada a um pequeno quiosque em Karlsplatz, a nota de dez euros, devolvida pela máquina, foi levada pelo vento e circulou no ar por toda a praça, acabando por cair do lado de lá da mesma rua onde se encontrava o rapaz. Vestido de preto, magro, enérgico, o rapaz, olhou com desdém e desprezo para o local onde a nota caíra, virou costas à máquina e seguiu em passo apressado, como quem foge do vento e do frio daquele dia de Fevereiro.

Indiferentes ao facto de uma nota de dez euros estar abandonada, junto a um canteiro,
muito arranjado, os vienenses continuavam a entrar e a sair de um luxuoso café, abafados pelos seus quentes casacos de pele e deixando os carros, de marca alemâ, estacionados em protegidos parques de estacionamento.

Zacarias Mutambe vive na Catembe. Tem que apanhar um barco muito velho para ir trabalhar a Maputo, por vezes, um pescador, amigo de seu pai, dá-lhe uma boleia e Zacarias consegue poupar alguns meticais... nesses dias come meia mandioca cozida.

Mutambe é o sustento da sua família, aos dezasseis anos, orfão de pai, ajuda a mãe a criar os irmãos. Começa a manhã num pequeno barracão no Alto-Maé. É empregado de um indiano desajeitado que precisa da ajuda de Zacarias para empilhar pesados bocados de sucata, que mais tarde será vendida para a África do Sul.

Bhanidan paga a Zacarias, todos os meses , alguns meticais, o equivalente à nota que o rapaz de Karlsplatz abandonou ao vento no centro de Viena.

O calor e a húmidade de Maputo em Fevereiro - o frio continental e seco de Viena...
Pés descalços, calções rotos, camisa atada pela cintura, Zacarias contrasta com as botas de pele, camisola de lã e casaco de pele forrado de cachemira do rapaz de Karlsplatz.

Áustria, este país rico, do centro da europa, desconhece a dificuldade que grande parte dos Moçambicanos tem para, diariamente, matar a fome aos filhos, mas em Viena as igrejas estão abertas, as missas sucedem-se, os evangelhos são lidos em voz alta e ninguém ouve, ninguém interpreta a Mensagem... ninguém quer saber...
Moçambique, para a maior parte dos austríacos, é um nome perdido no mapa africano.

Zacarias Mutambe sobrevive à multidão de ignorantes dos países ricos que o oprimem. Sonha em construir um barquinho para se tornar pescador e do seu barco gritar a todos que estão em terra que é preciso resistir ao assombro e ao espanto de Viena monumental.

O rapaz de Karlsplatz dorme na solidão do seu moderno apartamento, a angústia e a tribulação da insastifação constante enfraquecem-no...

Grande é o mistério que separa os Homens, mas maior será o Mistério que os unirá prolongando o amor para lá dos continentes.

Um dia a humanidade rica tropeçará na sua própria opolência e compreenderá a alma daqueles que abraçam, enternecidos e solidários, Zacarias Mutambe e devolvem a nota de dez euros ao rapaz de Karlsplatz...

«Voa gavião, pela tua inteligência, estendendo as tuas asas para o sul.» (Jó, 39;26)

«Abres a mão e satisfazes os desejos de todos os viventes» (Salmos,145;16)

H. Levy

quinta-feira, 22 de fevereiro de 2007

Diário II Gosto de Água


Gosto de água!

Gosto de água, de rios, ribeiros, mares, oceanos, de lagos e de charcos. Gosto de grandes copos de água cristalina e muito fresca. Gosto de fontes e de torneiras abertas, da água que corre dos beirados para o chão. Gosto da chuva, da neve quando derrete, dos lençóis de água subterrâneos, de poços profundos, de todas as águas que correm na cidade quando chove, de chapéus-de-chuva abertos, de roupa molhada estendida à chuva. Gosto de lágrimas grossas e quentes que escorrem pelas faces em sinal de alegrias...

Não gosto da água triste, lágrimas de dor, das tempestades no mar, das cheias, de enormes ondas oceânicas que trazem à terra a destruição e a dor... de naufrágios e de náufragos.

Gosto da água contente que corre e salta pelos montes, da tranquilidade dos lagos, das crianças que, enquanto brincam, são beijadas pelo mar salgado, gosto dos charcos onde vivem felizes as râs. Gosto das tempestades e grandes chuvas da ilha do Príncipe, gosto das danças e da alegria das chuvas Caboverdianas, gosto dos camelos da Mauritânia que transportam as águas no seu interior, gosto de bilhas de barro cheias de água, de garrafas transparentes meias de àgua no frigorífico. Gosto das mulheres e meninas, do Surinão, que transportam água à cabeça e são por ela salpicadas, gosto das máquinas da roupa quando estão a trabalhar... gosto das mulheres ajoelhadas nos riachos e nos ribeiros, do Campocheia, a bater a roupa em enormes pedras... gosto dos glaciares e dos ursos polares que comem neve. Gosto da água que serve de berço a todos os mamíferos...

Gosto da água que cai em finos fios por cima da cabeça dos bebés inclinados sobre grandes pias de pedra. Gosto das palavras que com elas trazem água. Palavras líquidas de alegria e esperança. Palavras de amor e compromisso... palavras de certeza e vida... palavras oblíquas inclinadas que pela cabeça escorrem devolvendo o Mistério à Humanidade.

Gosto da água por ela não conseguir estar muito tempo no mesmo local, por ser nuvem e mar, por correr por toda a terra... pela sede que a água tem de a todos alimentar...
Gosto da água que se esconde nos céus e no interior da terra, gosto de a poder transportar.

Em gotas ou em mares imensos, salgada ou doce, a água é a junção dos ares... é a luz, é um novo corpo, o corpo dos animais e das plantas e até dos minerais... Gosto da água que se evapora com o calor tórrido de Asmara... gosto de ilhas e de cidades submersas.

Gosto de água !

H. Levy

terça-feira, 20 de fevereiro de 2007

Vamos Ler ...


Escrever pressupõe muitos movimentos interiores e exteriores a quem escreve.

A escrita não é um acto solitário, pois no momento em que se tenta grafar o pensamento, há que ter em consideração a existência de muitos que, antes de nós, pensaram, na nossa ou noutra Língua, um mesmo, ou semelhante pensamento.

Transportamos, assim, uma multidão na ponta da caneta, uma sabedoria linguística, sociolinguística, sociocultural partilhada com tantos falantes da nossa prória Língua ou, até, tantas vezes, de outras Línguas...

A escrita não é uma necessidade do Homem, é, antes de mais, uma das formas que este tem de se entregar aos outros, de marcar um território, por tantos partilhado. O acto de escrever justifica o Homem e, nalguns casos, impele outros a uma outra forma de escrita, a leitura...

A leitura grafa na memória, na consciência, no movimento psico-emocional, imagens, ideias, sentimentos... grafa-os de várias formas: mais concretas ou abstratas, acompanhadas dos sons da Língua, de gráficos psicolinguísticos, organizados que permitem a leitura.

Ao lermos (ins)escrevemos, na nossa consciência-primeira, uma quantidade de impressões que terão, a seu tempo, de ser decifradas, compreendidas, ou abandonadas...

O que retemos nós das leituras que fazemos? Dependerá do tipo de leitura, da época da vida em que a fizemos e de muitas outras condicionantes , mas dependerá ,certamente, também, daquilo que desejamos ler para além do que está escrito.

A interpretação do que está escrito é o conhecimento da própria escrita. O texto plural é aquele que pressupõe várias leituras, visões diferentes do mundo do escrevente. Assim sendo, poderemos afirmar que grande parte dos textos, e não todos, são textos plurais... O leitor vai, quantas vezes, muito para além das propostas de quem escreve, reinventando o texto, desfazendo metáforas, acrescentando ou destruindo...

O texto escrito fica então subjugado às sugestões do leitor.

Ao longo da vida, o leitor vai adquirindo mecanismos que lhe permitem decifrar os códigos línguisticos, sociais, culturais e psicolinguísticos do texto, mas já antes disso ele consegue fazer leituras variadas do mundo à sua volta - aprendeu uma série de regras sociais; a interpretar os desejos e estados de espírito dos seus interlucotores e de si mesmo, a reagir aos mais variados estímulos, a variar as respostas consoante esses mesmos estímulos etc... aprendeu a fazer uma série de leituras... ( utilizando a linguagem não-verbal ). É essa aprendizagem que o vai preparar para a constante interiorização do código específico que é a linguagem grafada e, em simultâneo, ser ele próprio capaz de grafar, usando o mesmo código, os seus pensamentos e movimentos psicolinguísticos e tudo o resto que está subjacente ao acto da escrita.

Parece ser a variedade de respostas que indivíduo é capaz de dar aos vários estímulos, das linguagens não verbais, que vai fazer com que, depois de apreender os mecanismos que o levam à leitura e à escrita, se sinta capacitado para uma interpretação, cada vez mais plural, do no acto da leitura.

Como atrás fica dito, o processo de aprendizagem da leitura/interpretação inicia-se muito antes dos primeiros contactos com os códigos que levam à leitura/escrita e não se esgotam com estes, continuando pela vida fora, sempre dependentes do nível e da capacidade interpretativa que temos do mundo, muito para além da nossa vida interior, da vida interior dos outros e de todos os estímulos exteriores ao indivíduo, que o convocam para uma panóplia de respostas constantes e sempre variadas...

H. Levy

terça-feira, 13 de fevereiro de 2007

Diário I De Amor...


Entrei em casa,a tarde despedia-se do dia e com ela trazia a noite, saudei os gatos que dormitavam , serenamente, por cima dos sófas, encaminhei-me para a cozinha, preparei um chá com aroma oriental, voltei à sala, abri a Bíblia que ando sempre a ler... abri-a onde tinha deixado o marcador com a fotografia da Terra vista do espaço. Li a Epístola de S. Paulo aos Romanos 12;3 - 13;8.


(...)porque pela graça que me é dada, digo a cada um de vós que não pense de si mesmo além do que convém; antes pense com moderação, conforme a medida da fé que Deus repartiu a cada um(...)


O meu coração bateu com mais entusiasmo, a gata veio deitar-se no meu peito e assim fiquei sem saber o que convinha que penssasse de mim, afinal julgar os outros não era conveniente , só pensar em mim, e não mais do que me convém... e o que me convém pensar de mim? E como pensar em mim sem os outros? Tentei pôr moderação no meu pensamento, descobri que se me devolvesse às preocupações filosóficas do quotidiano teria de abandonar grande parte do pensamento que não me convém... senti-me limitado quase sem destino psicológico, banido de mim próprio... abandonado da intimidade do pensamento...

Estonteado fechei os olhos, o ronronar da gata enternecia aquele momento... o que pensar de mim ? Que desejaria S. Paulo que eu fizesse ao mundo confuso, aturdido, vago, replecto, rejeitado, o que era naquele momento o pensamento de mim mesmo ? A gata saltou do meu peito para o chão, o chá arrefecia em cima da mesa, os meus olhos encontraram, novamente,o texto e leram

(...) a ningém devais coisa alguma, a não ser o amor com que vos ameis uns aos outros (...)

Oh! Livro dos Livros... lá estava a resposta ao que me convinha pensar de mim... afinal eram os outros... amá-los a todos, principalmente os desconhecidos, aqueles a quem desconheço o rosto, uma multidão de semelhantes para amar... não mais sentiria tédio, tanta preocupação, tanto amor para partilhar... comecei imediatamente a imaginar os rostos e as necessidades desses meus semelhantes. Reuni os nomes dos países conhecidos de África, o sofrimento e a fome, mas também a alegria daqueles novos amigos que vivem no continente mais belo! Afinal não era difícil amá-los a todos, mesmo os assassinos e ditadores teria de aprender a amar.(Ainda não me sinto preparado para tanto!!) Em breve serei capaz! Julgo! Passei imediatamente para a Ásia e comecei logo a sentir uma imensa ternura por todos os asiáticos, e não são poucos! ... Será que o meu coração aguenta tanto amor, tantos irmãos desconhecidos para amar ?... Serenamente, pensei que também tinha irmãos para amar em países muito ricos, que vivem à custa da miséria e da pobreza dos irmãos pobres da América Latina, da Ásia, de África... teria de amar os ricos habitantes da Europa, dos Estados Unidos, do Canadá, do Japão e da Austrália e ainda os supericos que governam os superpobres...

As imagens de toda a Humanidade faminta, sem água, moribunda, fraca, injustiçada, explorada... exilados, desterrados, passam pelos meus olhos, a elas se juntam as imagens dos também desgraçados dos países ricos e dos ricos e poderosos que os governam na opulência... tudo irmãos para eu amar! Se a estes juntar, ainda, outros, também criaturas como os animais, todos, aquáticos incluidos,todas as criaturas do reino vegetal, aquáticas incluidas, os minerais, os planetas, as galaxias...

A minha alma, o meu coração recusam-se a todos abrager no mesmo Amor ! Invento então um Ser que todos representa, chamo-lhe Deus, decido dedicar-lhe não só a minha vida, o pensamento, a capacidade que tenho de O amar... entrego-Lhe, juntamente com o meu amor, a morte, a minha própria forma de não ser... o esquecimento, a mente ensandecida, os poemas, os beijos, o tédio dos dias, o sorriso que me acontece quando leio S. Paulo num final de tarde em que o chá arrefece e a gata Vicenta volta a adormecer no meu colo.
H.Levy

sábado, 10 de fevereiro de 2007

Olhar Florbela Espanca


Ler Florbela Espanca é, sempre, para nós, um incansável mistério. Nenhum texto convida e faz sonhar o amor de um modo tão forte e absoluto – um sonho impossível – ter e procurar o Amor como um caminho de dor e de quimera e mesmo assim não cessarmos de evita-lo.

Florbela parece convocar-nos, ao longo dos seus versos, para um caminho que conduz a Deus enquanto busca aquele que ama. Este duplo movimento – caminho e busca – desperta-lhe o desejo da transfiguração só conseguido pela morte. As palavras utilizadas por Florbela Espanca para dar corpo a esta forma de ser e sentir explicitam bem o carácter profundamente religioso do amor que sente.

Para se ser cativado por esta aventura amorosa – encontrar Deus em cada entrega – a busca constante da paixão (tal como Cristo não pôde fugir à Sua) para acolher o testemunho de um caminho que se inicia em Livro de Mágoas e termina em exaltação, ressurgimento e inspiração com Charneca em Flor. Florbela devolve-nos às palavras, às confidências que elas encerram, à sua dimensão viva de testemunho. Ressuscita o seu texto pois ela é também a voz que o escuta.

Não se chega ao conhecimento da poesia florbeliana pelo conhecimento meramente intelectual, nem, talvez, pela análise histórico-crítica porque é o coração de Florbela que se escuta que se percebe como quem escuta e percebe o seu próprio coração. Assim, constatamos, antes de mais, nos sonetos de Florbela, o testemunho vivo e confiante da nossa própria vida, da nossa espera. O grande obstáculo à leitura de Florbela somos, quantas vezes, nós próprios porque impregnados de falsos valores morais e de condutas sociais estereotipadas tememos uma evocação dupla: uma para os homens e outra em Deus. A primeira livra-nos da nossa imagem no diálogo com a poesia florbeliana, a outra, que nos submete à vontade do Homem, abre-se no reino de Deus. A porta em Deus não se pode abrir sem que se abra também a primeira – é essa a sabedoria de Florbela: chegar a Deus através do Homem, ou melhor, da queda da imagem do mesmo. Esta porta dupla é a marca que distingue peremptoriamente Florbela dos outros poetas do seu tempo.

Não se trata de uma escolha entre Deus ou os Homens e não é deixando de se ser humano que vamos para Deus, mas, sim, pela impossibilidade do absoluto no amor humano bem como da sua imperfeição.

É um coração de mulher, que se queixa de ser prisioneira da loucura e do orgulho, que parte à procura do “Eu” superior, decidida a deixar o amor reinar na sua vida.
É a impossibilidade de um amor humano que a remete para uma aventura de dimensão divina capaz de extraordinárias transformações no próprio ser. É do respeito por essas duas dimensões do amor, humana e divina, que surgem os versos de Florbela que encerram uma realidade fatal da qual a autora não se separa nunca, tendo até consciência da sua utilidade para o encontro esperado com o divino – a morte!

“Bela entrega-se à euforia de festejar, na morte, o seu renascimento(...) ostentando a alegria da morte, dela quer chamar a atenção para a transparência em que vai entrar. O seu espiritualismo “ultrapassa o céu””.

A relação entre Florbela-mulher e Florbela-espírito, ambas defrontando-se, encontrando-se, resistindo com o desejo sempre repetido de que a feminilidade dê lugar, se submeta e obedeça à espiritualidade, que fala, ordena e toma nela o espaço de um amante inatingível. A porta que a leva a Deus não se pode abrir sem que se abra também a que a leva aos braços do amor humano.

O drama de Florbela é compreender que ao mesmo tempo que é atingida pela mentira, pela morte, pelo orgulho é, também, portadora de vida, de verdade, de Amor, ou seja, de santidade.

Florbela passa então a ser testemunha de uma história que diz respeito a todos nós: a história de uma Humanidade em busca de Amor e como nós interroga-se interrogando Deus.

H. Levy

Desmaios


Felizmente ainda me vou perdendo na vida. Apaixonado e morto em cada noite.
Descalço sempre descalço encontro, no avivar de lua nova, as trevas deliciosas de um amor triste – sem inicio— muito triste!

Nada de mim mais pode partir para o Além, todo eu e a Alma já lá estamos.
O que mostra o sol é um conjunto despedaçado de seres que já foram fadas encantadas em bosques de beijos perdidos, que aos meus lábios, sem sabor, vieram parar!

E assim morto do lado de lá das nuvens pareço mais real aos olhos daquelas que vivos na maldade infinita dos vivos insistem em me beijar e tirar à minha boca o sabor celeste!

Dádiva de Deus!

Não sou daqui! Morri há anos. Ainda novo. Agora que vos vejo dos nuvens em tempestades sonho ainda que vivi ao lado de todos com um Amor tão grande que se perdeu.

Com saudade infinita daqueles lampiões de luz para onde me habituei a renascer com a força da tempestade agitada sobre o chão onde dizem que estou.

Sobre-me a solidão e a dor.

Aqui onde desabo em chuva sobre a terra, aí onde alimento as rosas e as giestas.

Eu parti.

Adormeço, agora, nos braços de Deus em cada poente, com os lábios encostados ao peito de um Amor nunca encontrado.

Sobre-me um trono onde fui rei.

Encontrada a loucura renasce-me de vida o vento sul coroado de cores de um deserto anónimo onde o Nada é permanente como a mágoa e Amor do Inicio.

Duvido de tudo porque sei que o tempo se esgota na dor da existência.

H. Levy in Intensidades (Europress 2001)

Deus a Arte e o Homem


Há sempre um lado de nós que habita muito longe. No coração de alguém, no espírito de uma árvore no quintal da nossa infância ou num mar longínquo onde nos banhamos num dia de sol. Há sempre algo de nós perdido como as peças de um “puzzle” que não nos atrevemos a montar. Quem somos? O que somos? Somos a forma como permanecemos nos outros e nas coisas. Somos a aurora revigorada em cada manhã! Quanto mais amarmos, mais nos amam e esta é a possibilidade única de uma vida infinita, eterna, porque permanece gravada na alma das coisas e dos outros.

O amor, para a humanidade, e para todo o conjunto dos Seres, é um pensamento e esse pensamento só existe se existir sangue a circular, seiva por entre as raízes, vida onde o pensamento se possa espelhar. Mas o pensamento está também para além da vida e do sangue, ele é o alimento do Universo transformado em amor, na sua expressão mais absoluta. Não há vida sem pensamento, pois é nele que se instala o amor. Não há vida sem amor. Redefiniremos então o conceito Vida. Todos os que parecem vivos podem não o estar, nós incluídos, pois se não houver amor não há vida e se não houver vida há a impossibilidade da morte. Somos então levados a aceitar que há seres que “pairam“ que se angustiam na impossibilidade da morte, na permanência constante da falta de amor e de um pensamento Absoluto. Há Homens que não morrem, a energia viva que deixam permanece e à falta de amor acrescenta-se o sangue que pode percorrer veias e que nem sempre é sinal de Vida.

Temos, têm os pensamentos vindouros de refundar os conceitos Vida/Morte que nas sociedades ocidentais aparecem impregnados de atributos teológicos redutores de uma Realidade observada e nomeada pela palavra humana. A Vida e a Morte serão a mesma coisa? – o Homem terá mais facilidade em perceber a Natureza se utilizar formas dicotómicas ? – Da união dos opostos nasce uma nova realidade. Será então a Vida um momento ímpar da eternidade do momento? Tal como a noite é um momento especial do dia...

Ao reflectirmos sobre o Amor, a Vida e a Morte estamos a reflectir sobre a Natureza e por isso sobre Deus, como Criador e Conservador do Universo. Reagir a esta verdade é conferir à ciência e às suas leis uma capacidade de abordar fenómenos como a subjectividade e a intuição, que esta não pratica.

O Amor, entidade comum a todo o Universo, não precisa nem pode ser comprovado com os métodos da ciência, mesmo que esta os tivesse. A sua existência é reconhecida através da alma, essência espiritual de Deus, impregnada em todos os seres criados.
O mundo invisível das coisa e dos seres confere-lhes a essência daquilo que são e as palavras que as designam guardam essa essência espiritual, das coisas e dos seres, que não se transmite através da linguagem mas sim na própria linguagem. O que quer dizer que a Língua ao denominar um ser ou uma coisa refere não só a sua essência física como também a sua essência espiritual – a sua alma – a imaterialidade é expressa com a materialidade do som. É como se o Criador e Conservador do Universo tivesse deixado a sua essência ligada à forma das coisas e dos seres para que, assim, a Língua posteriormente as pudesse nomear. Mas a Língua não nomeia unicamente seres e coisas, tem também a possibilidade de referir a essência espiritual mesmo quando esta não tem referente físico, é o caso de palavras como : Deus, Amor ,Pensamento etc. Mais interessante seria se pensássemos que uma das regras para que uma palavra seja morfologicamente considerada um verbo é o facto de ela aceitar a forma imperativa e a sua negação. A linguística moderna classifica os verbos morrer, nascer, pensar, amar, etc. Como verbos psicológicos. Onde vai buscar esta fronteira? Porque razão pensar é psicológico e alimentar não o é?

O que aqui propomos é uma reflexão que nos leve mais além, que nos proporcione distinguir de forma mais cabal estes dois tipos de palavras gramaticais – a umas chamaremos verbos e às outras palavras pró-verbais, pois como já vimos não têm o mesmo comportamento sintáctico dos verbos.

A psico-linguistica teria então que encontrar uma fronteira entre o que são verbos psicológicos e o que não são, ou melhor se existem verbos mais ou menos psicológicos.

Não nos parece que os linguistas que têm como objecto de estudo a Língua e a linguística como uma ciência se interessem por estas questões que vêm dar à Língua
uma nova dimensão e à morfologia emprestar uma nova classe de palavras – as palavras pró-verbais.

H. Levy

A poesia é um acto de solidão


É necessário estar completamente só para se sentir a natureza da obra da criação e a totalidade dos deuses que nela pulsam. É um acto solitário como a dor é um momento desintegrado de nós, da sociedade e das suas regras, sejam estas morais estéticas ou linguísticas.

Escrever um verso é ter este privilégio de por um momento se sentir só e de ser único como mais ninguém o pode ser.

Ser poeta é estar colocado em frente a uma folha de papel e preparar-se para mentir, muitas vezes mesmo para enlouquecer. Findo o verso, o poeta volta ao mundo da dolorosa realidade em que a solidão lhe é negada. A solidão do poeta em nada é comparável à solidão dos seres felizes, pois o poeta anseia por este estado em que a dor e a alma se conjugam para dar lugar a um outro indiscritível estado, exaltado porque desnecessário. Ímpar porque o poeta e o poema debatem-se pela unicidade.

O poeta chora ou ri? Diverte-se com o poema ou refugia-se nele?

Não se sabe nada dos poetas e tanto se escreve sobre eles. Se nada sabemos, eles são brancos e vazios, se julgamos saber e dizemos existem então para a literatura, mas morrem tombando sobre si próprios. O que fazer então?

Se nos pedissem que inscrevêssemos numa coluna o nome de todos os poetas que julgamos ser Poetas e noutra o nome dos poetas que pensamos que o não são, que resultados obteríamos? E se nessas colunas escrevêssemos todos os poemas que consideramos como tal e todos os poemas que achamos que o não são, que resultados obteríamos? E se confrontássemos as nossas colunas com as dos nossos amigos que resultado obteríamos? E se o fizéssemos confrontando as nossas colunas de poetas e poemas com as dos nossos inimigos? Que resultados obteríamos?

É pela diferença do conhecimento que temos todos uns dos outros que nos julgamos indivíduos, assim como o poeta se sente ilusoriamente um ser como todos os outros diferenciando-se unicamente de si próprio quando poeta ou quando respira. Sim, porque os poemas não têm ar. Com esta ideia aproximamo-nos da ideia de poema total, que pode ser definida como o poema que estabelece relações fortes de oposição e antítese, aspirando a um irreprimível desejo estético de sobrevivência para lá dos tempos. Não há um poema poema que não guarde em si todo o saber cultural e linguístico de uma Língua ou das suas possibilidades.

Podemos assumir quatro posições fundamentais em face da literatura: tentar conhecê-la, estudá-la, ensiná-la ou vivê-la. Quanto à poesia, especificamente, parece-nos que a única atitude é vivê-la, pois esta parece ser a forma literária intraduzível na sua plenitude, assim como a vida é irrepetível e por isso intraduzível na sua metáfora.

H. Levy

Carta a Marie


A leveza das nuvens ,que trouxeram os teus versos até mim, permanece ainda na luz de um tempo em que menino me deixava amar por diligentes amantes em cujos corpos ainda hoje permaneço como o Estigma no lado de Cristo.

Sinto-me rodeado de lírios e ares que sulcando montes, respirados por ilhas me chegam do Atlântico – vou respirar ! Nada daquilo que penso deixa de ser um movimento celeste e todo o universo está contido no meu sonho. Sou vizinho de Sóis, líquido vizinho de Sóis e das Galáxias que não cabendo em mim foram ocupar outros lugares e formaram o infinito onde Deus já se encontrava vigilante e doce como uma árvore em qualquer caminho...

O menino de quem falas no teu poema sou eu, por inteiro, por tudo o que existe de mais sagrado, sou eu na magia das palavras da tua língua, sou eu devorado pelo saber do poeta.

Meu Deus, este é o meu corpo entregue à tribo dos famintos do amor! Quem procurou em minhas mãos o Sol? Quantos repousaram seus corpos cansados de entrega no mel da minha boca! A quantos me entreguei?
Eu sou das flores e dos ares, do sol e das estrelas. Há anos que fui prometido ao mar ao seu amor vigoroso – dele sou. Os homens são a ilusão necessária aos sentidos, são a roupagem do espírito demente de uma natureza tão ausente que do meu corpo nascem caricias e paixões.

o Homem ama porque é prometido à morte e tem a ilusão de a afastar no momento da entrega. Nós os poetas deixamo-nos amar porque já somos a eternidade de onde viemos e onde permanecemos. Somos a ilusão que a realidade mostra, somos a fome e a angústia, somos também a alegria de permanecermos sempre em tudo e em todos por uma vontade alcançada em cada abraço onde as lágrimas, como a chuva das tempestades, arrefecem um corpo que estremece no trovejar surdo do coração.

Igual ao poeta talvez o sonho, fecunda Primavera da realidade que traz a vida adormecida por noites sem lua e dias despidos de horas. Os teus versos são a essência invisível das coisas, os telhados brancos de levar e trazer águas que os horizontes de bruma soletram.

Não há ave nem profundezas do mar mais livres e agitadas que a alma de um poeta.

H. Levy

Carta II


A presença das palavras no papel refere ,somente, um longo pensamento que se une ao espírito que é a Alma, única parte de mim que respira.
Sabes, Poesia, a vida é feita de ilusão de actuais e antigos sentimentos, de uma troca amorosa constante, de rios doces e oceanos salgados, de permanecermos e de partirmos sempre.

Há muito que nada sabemos um do outro.
Tu ,uma forma de não ser humana, uma forma de não aceitar o real diante de si e oferecendo-nos a própria realidade de sonhar. Há na tua essência uma espécie de cruzamento entre o desejar ser tudo de si, por um lado, e o ambicionar ocupar uma dimensão supra-terrena nos outros. Ter-te-às resignado com o facto de seres a vida e de não construíres a própria vida. Ser aquela por quem alguns tanto querem viver, querem morrer, e não querem mas querem... Como se vivesses com a esperança que todas as ilusões dos poetas se tornassem reais um dia e tivesses entendido no passar dos anos os seus próprios destinos. Destinos de sombras imaculadas, de noites perpétuas e artificiais, de paisagens inabitadas, de lugares vazios de lembrança, de caminhos frios e ininteligíveis, de espaços, de abandono prometido, de largos desertos, praças esquecidas, palácios em ruínas, de espectros estranhos, de lívida imagem presente, de mosteiros e conventos, e abadias de morrer, de silêncios no silêncio, de braços imateriais.

Eu, um homem feliz com a Natureza e com o Amor , devedor de tudo o que este me concedeu. Assim, vou sendo em cada dia capaz de mim e de muitos outros! Esta lógica tu desconheces, não podes compreender, não tens referências, só podes aceitar, mas se aceitas, unicamente, onde estou eu? Onde está o meu lugar no teu coração?
É preciso ter determinação nos sentimentos que nos ligam aos outros, aceitá-los não é a única necessidade, é urgente amar e é desse amor, Poesia , que eu te quero poupar!

H. Levy

Carta I


O nosso encontro teve um sabor amargo, uma profunda dor, um grito de irmãos que se desejam num amor proibido como numa selva se proíbe o deserto.

O nosso encontro terá um sabor doce quando “ o para além do tempo” nos confortar e iludir!
O tempo passa e fala no nosso corpo uma linguagem clara e pura – o meu é feliz na sensualidade e nos beijos, no amor que o ocupa e o impede de pensar. Não quero outro lado, não quero o outro lado. Entrego vagamente uma só face e é nela que me deixo pertencer e é por ela que tu, Poesia, habitas em mim.

Podia falar-te de apóstolos, de Paulo, de Pedro e de João, por cartas e por parábolas. A minha alma é como uma Bíblia onde homens escrevem ensinamentos de Deus e mulheres debruçadas acariciam com seus cabelos e com lágrimas lavam os meus pés.
Meu corpo, suave mansidão, onde o consolo se abraça ao peito desnudo de um beijo que guardo e aprecio para logo o abandonar no Nada que é Deus.

A tua presença em mim, Poesia , revela uma vez mais que a eternidade dos sentimentos se mantém para lá dos condicionalismos sociais e do tempo. Unem-nos laços fortes e permanentes como os rituais da Natureza que se renova e se mantém em cada Estação.

Quem sou ? o que sou? perguntas!
Livre e Longe são epítetos capazes de abarcar a minha existência. Longe na distância que me separa dos outros, de uma sociedade que ajudo a construir, mas da qual me afasto por amor e por lágrimas. Livre pois há em mim a certeza do toque sedoso das pétalas cujo pólen voa pelos campos, fecundando, amando e permanecendo em todos os prados onde a chuva e o sol se estendem devolvendo vida ao agora que é Nada.

Tu em mim não és uma recordação, és uma presença feminina importante, o contrário de mim e por isso eu próprio – o lado mais visível de mim! Contigo aprendi como se ama o Homem, o desejo e a sua lei, a entrego total e o seu abandono ao abraço que nos não quer...aprendi assim a ser devolvido, constantemente, ao amor da infância à posse dos lábios que nos beijaram!

H. Levy

do amor...


O amor não escolhe parentesco, nem nobreza de alma, nem sequer sexo...
invade-nos na desgraça e na santidade onde os corpos se saciam através de um imaginário traçado pelo caminho que inventamos e que a realidade transforma em palavras.
A transubstanciação do mistério do amor dá visibilidade aos corpos que masculinos se entregam mesmo quando o mundo, e não a Natureza, aconselha o afastamento.
Assim, se devolve ao homem a sua dimensão de ser prometido ao amor, à liberdade emocional na escolha e à possibilidade de reconhecimento no outro de si mesmo, diferente enquanto igual na ardência e no desejo, onde a alma confere um movimento de luz e de verdade.

H. Levy

Orfeu Enamorado


Orfeu enamorado que tañia
por la perdida ninfa, que buscaba
en el Orco implacable donde estaba,
con la arpa y con la voz la enternecia.

La ruela de Ixión no se movia,
ning~un atormentado se quejaba,
las penas de los otrosablandaba,
y todas las de todos él sentia.

El sonpudo obligarde tal manera
que, en dulce galardón de lo cantando,
los infernales reys,condolidos,

le mandaron volver su compañera,
y volvióla à perder el desdichado,
con que fueron entrambos los perdidos.

Luís de Camões

Orfeu buscava Euridice, a amante perdida no mundo dos mortos. Tangia a harpa e cantava com voz enternecida; o seu canto abranda até as dores eternas dos condenados às penas infernais; a roda das serpentes, suplício de Ixíon, suspende o seu movimento: todas as penas dos outros o seu canto suavizava, porque ele próprio sente as penas de todos os outros. Condoídos, os reis infernais dão-lhe o doce galardão merecido e restituem-lhe a companheira. Ele volta-a porém a perder, e assim ambos foram perdidos.