sábado, 10 de fevereiro de 2007

Olhar Florbela Espanca


Ler Florbela Espanca é, sempre, para nós, um incansável mistério. Nenhum texto convida e faz sonhar o amor de um modo tão forte e absoluto – um sonho impossível – ter e procurar o Amor como um caminho de dor e de quimera e mesmo assim não cessarmos de evita-lo.

Florbela parece convocar-nos, ao longo dos seus versos, para um caminho que conduz a Deus enquanto busca aquele que ama. Este duplo movimento – caminho e busca – desperta-lhe o desejo da transfiguração só conseguido pela morte. As palavras utilizadas por Florbela Espanca para dar corpo a esta forma de ser e sentir explicitam bem o carácter profundamente religioso do amor que sente.

Para se ser cativado por esta aventura amorosa – encontrar Deus em cada entrega – a busca constante da paixão (tal como Cristo não pôde fugir à Sua) para acolher o testemunho de um caminho que se inicia em Livro de Mágoas e termina em exaltação, ressurgimento e inspiração com Charneca em Flor. Florbela devolve-nos às palavras, às confidências que elas encerram, à sua dimensão viva de testemunho. Ressuscita o seu texto pois ela é também a voz que o escuta.

Não se chega ao conhecimento da poesia florbeliana pelo conhecimento meramente intelectual, nem, talvez, pela análise histórico-crítica porque é o coração de Florbela que se escuta que se percebe como quem escuta e percebe o seu próprio coração. Assim, constatamos, antes de mais, nos sonetos de Florbela, o testemunho vivo e confiante da nossa própria vida, da nossa espera. O grande obstáculo à leitura de Florbela somos, quantas vezes, nós próprios porque impregnados de falsos valores morais e de condutas sociais estereotipadas tememos uma evocação dupla: uma para os homens e outra em Deus. A primeira livra-nos da nossa imagem no diálogo com a poesia florbeliana, a outra, que nos submete à vontade do Homem, abre-se no reino de Deus. A porta em Deus não se pode abrir sem que se abra também a primeira – é essa a sabedoria de Florbela: chegar a Deus através do Homem, ou melhor, da queda da imagem do mesmo. Esta porta dupla é a marca que distingue peremptoriamente Florbela dos outros poetas do seu tempo.

Não se trata de uma escolha entre Deus ou os Homens e não é deixando de se ser humano que vamos para Deus, mas, sim, pela impossibilidade do absoluto no amor humano bem como da sua imperfeição.

É um coração de mulher, que se queixa de ser prisioneira da loucura e do orgulho, que parte à procura do “Eu” superior, decidida a deixar o amor reinar na sua vida.
É a impossibilidade de um amor humano que a remete para uma aventura de dimensão divina capaz de extraordinárias transformações no próprio ser. É do respeito por essas duas dimensões do amor, humana e divina, que surgem os versos de Florbela que encerram uma realidade fatal da qual a autora não se separa nunca, tendo até consciência da sua utilidade para o encontro esperado com o divino – a morte!

“Bela entrega-se à euforia de festejar, na morte, o seu renascimento(...) ostentando a alegria da morte, dela quer chamar a atenção para a transparência em que vai entrar. O seu espiritualismo “ultrapassa o céu””.

A relação entre Florbela-mulher e Florbela-espírito, ambas defrontando-se, encontrando-se, resistindo com o desejo sempre repetido de que a feminilidade dê lugar, se submeta e obedeça à espiritualidade, que fala, ordena e toma nela o espaço de um amante inatingível. A porta que a leva a Deus não se pode abrir sem que se abra também a que a leva aos braços do amor humano.

O drama de Florbela é compreender que ao mesmo tempo que é atingida pela mentira, pela morte, pelo orgulho é, também, portadora de vida, de verdade, de Amor, ou seja, de santidade.

Florbela passa então a ser testemunha de uma história que diz respeito a todos nós: a história de uma Humanidade em busca de Amor e como nós interroga-se interrogando Deus.

H. Levy

2 comentários:

musqueteira disse...

...além do tejo, perto da cidade das tintas o céu por vezes parece estar mais perto de nós!é a vastidão daquele amarelo que teima ser quase sempre igual. igual, ou por vezes somos nós próprios que o pintamos só de uma cor para que as palavras ganhem outros sentidos. neste alentejo, há espiritualidade em todos os caminhos... mesmo que ausentes de passos estejam, há sempre em cada estrada, esboços de gente inventada.

manela goucha soares disse...

Cá vim eu diligentemente como prometido. Gostei!
Entre outras coisas a gente escreve para se descobrir/encontrar. Um beijo e até ao teu jantar no dia 3