quarta-feira, 21 de março de 2007

À Ternura da Vicenta...


Escrever na primeira pessoa do singular pode parecer, por vezes, desadequado, pois, aparentemente, os leitores valorizam mais uma opinião indeterminada , mesmo quando esta é fruto dos sentimentos e do pensamento de quem escreve. Neste texto o uso da primeira pessoa do singular é imperativo!

Sempre me relacionei com os animais de uma forma particular. Desde cedo os entendi como seres com inteligência partilhada e com uma vida emocional muito rica e variada. Ainda pequeno, habituei-me a conviver com vários animais e com todos estabeleci relações fortes, familiares mesmo !
A amizade e dependência afectiva que estes seres nutrem pelos seus amigos humanos sempre me aproximou deles de forma muito terna e com vontade de com eles estabelecer uma relaçâo sólida.

Os animais são, para aqueles que os amam, amigos francos e honestos sempre dispostos em nos alegrarem os dias. Enchem o nosso coração de carinho e ternura, contribuem para que os nossos dias sejam mais felizes, pois são partilhados por estes amigos que nos obrigam a confrontarmo-nos com o melhor de nós próprios...

Numa madrugada, quase manhã, de Junho acordei angustiado, com o coração muito acelerado, inquieto. Por não perceber o que me estava a acontecer, achando muito estranho o estado em que me encontrava, desci ao andar de baixo da enorme casa onde vivia. Fui verificar se os meus três pequenos sobrinhos dormiam tranquilos nos seus quartos. Muitas vezes, enquanto pequenos, os meus sobrinhos passavam temporadas comigo no Alentejo. Mesmo depois de verificar que as crianças estavam bem, a minha agitação aumentava. Não era o sono dos rapazes que me trazia naquele estado de ansiedade. O que seria então ?

Vesti-me, sai de casa deambulando pela vila, ainda adormecida, apesar do sol já ter despontado e começar a espelhar-se na barragem do Maranhão. Andava sem destino como se conseguisse, desse modo, libertar-me da dor angustiante que de mim se apoderara.

Ao passar por um caixote de lixo pareceu-me ouvir um som conhecido. Abri a tampa do enorme contentor, aparentemente vazio, saltei lá para dentro, deparei com cinco gatinhos recém-nascidos que tinham sido afogados e atirados para aquele caixote imundo. Verifiquei que todos os gatos estavam já sem vida, excepto um cujo coração batia muito pausadamente. Saí do caixote , virei o gatinho de pernas para o ar e dei-lhe umas pancadinhas com o dedo.

Encaminhei-me logo para casa. Pelo caminho ia fazendo respiração boca-a-boca ao gatito que se debatia por sobreviver, ao mesmo tempo pensava que a razão da minha angústia era aquele gato bebé que precisava de ser salvo! Chegado a casa aqueci um saco de água quente, limpei muito bem o gatinho e encostei-o contra o meu peito nu. Assim nos deixamos estar os dois durante longo tempo... começava ali uma relação cujos laços eram a porópria vida que tentava devolver àquele desprotegido e infortunado animal.

Seguiram-se várias noites sempre interrompidas pelos biberons, cuidados e carinhos. Constantes idas ao veterinário. Assim, a Vicenta tornou-se numa gatinha muito bonita, simpática e feliz. A nossa amizade era imensa e ia crescendo à medida que o tempo passava. Havia entre nós laços fortíssimos e um entendimento constante e perfeito.

Durante treze anos a Vicenta acompanhou a minha vida. Veio comigo viver para Lisboa, abandonando a liberdade e a alegria de andar livre pelos quintais e telhados da vila onde nasceu. Habituou-se a viver num apartamento no centro da capital, contentou-se com uma varanda solarenga! O seu amor por mim era maior e mais importante do que o gosto de saltar muros, caçar insectos, adormecer em cima das árvores...

Entre nós dois foi-se estabelecendo, ao longo dos anos, uma sólida amizade, ambos tentavamos tornar felizes os dias um do outro...

À volta da mesa de jantar celebravamos a amizade, o encontro, a ternura que a todos unia, comiamos felizes e brindavamos com um excelente vinho que a Paula e o Carlos tinham trazido. O calor daquela mesa era a esperança, sempre renovada de voltar a acreditar no Homem. Discutiamos poesia, Deus e arte...

Enquanto isso a minha amiga Vicenta ,doente há vários meses, entregara-se, serenamente, a um sono eterno, deixando-me com uma maior angústia, dor e inquietação do que na madrugada em que a encontrei...

Obrigado Vicenta por teres feito de mim uma pessoa melhor!

H. Levy

7 comentários:

Unknown disse...

Obrigado H. por teres escrito um texto tão bonito e tão tocante. Gostei muito. A Pintinhas concordaria comigo se soubesse ler.
Ana

Anónimo disse...

A Vicenta vai deixar saudades...
Li o texto com o Pitufo ao meu lado, tão grande, tão doce, tão ele e tão meu amigo. Olho para este gato e percebo, palavra por palavra, tudo o que dizes.
Percebo com o coração.
Um beijo para ti.
M

Anónimo disse...

Obrigada pelo texto tao especial. Concordo com a tua opinao sobre os animais que partilam o nosso quotidiano. A Vicenta era de facto uma gata especial, vou encontrar a tua casa mais vazia...Bj
MA

Anónimo disse...

À sua ternura, então...
Bjs.

Hugo Lourenço disse...

Olá!

Espero que esteja bem. Gosto muito do que escreve. Virei aqui mais vezes.

Abraços

Hugo

kel disse...

Os animais são capazes dos sentimentos mais puros e das amizades mais verdadeiras... Preenchem-nos os dias enquanto nos fazem companhia e deixam saudades quando partem... A Vicenta pode ter contribuido mas é sem dúvida uma excelente pessoa! Que o sono eterno da Vicenta seja descansado, depois de uma vida que certamente foi feliz.

Beijinhos, Teresa Raquel.

Anónimo disse...

como gostava de ter sido uma vicenta na tua vida...
beijo