sexta-feira, 23 de fevereiro de 2007

De Maputo a Viena


Um rapaz tentava tirar alguns maços de tabaco de uma máquina encostada a um pequeno quiosque em Karlsplatz, a nota de dez euros, devolvida pela máquina, foi levada pelo vento e circulou no ar por toda a praça, acabando por cair do lado de lá da mesma rua onde se encontrava o rapaz. Vestido de preto, magro, enérgico, o rapaz, olhou com desdém e desprezo para o local onde a nota caíra, virou costas à máquina e seguiu em passo apressado, como quem foge do vento e do frio daquele dia de Fevereiro.

Indiferentes ao facto de uma nota de dez euros estar abandonada, junto a um canteiro,
muito arranjado, os vienenses continuavam a entrar e a sair de um luxuoso café, abafados pelos seus quentes casacos de pele e deixando os carros, de marca alemâ, estacionados em protegidos parques de estacionamento.

Zacarias Mutambe vive na Catembe. Tem que apanhar um barco muito velho para ir trabalhar a Maputo, por vezes, um pescador, amigo de seu pai, dá-lhe uma boleia e Zacarias consegue poupar alguns meticais... nesses dias come meia mandioca cozida.

Mutambe é o sustento da sua família, aos dezasseis anos, orfão de pai, ajuda a mãe a criar os irmãos. Começa a manhã num pequeno barracão no Alto-Maé. É empregado de um indiano desajeitado que precisa da ajuda de Zacarias para empilhar pesados bocados de sucata, que mais tarde será vendida para a África do Sul.

Bhanidan paga a Zacarias, todos os meses , alguns meticais, o equivalente à nota que o rapaz de Karlsplatz abandonou ao vento no centro de Viena.

O calor e a húmidade de Maputo em Fevereiro - o frio continental e seco de Viena...
Pés descalços, calções rotos, camisa atada pela cintura, Zacarias contrasta com as botas de pele, camisola de lã e casaco de pele forrado de cachemira do rapaz de Karlsplatz.

Áustria, este país rico, do centro da europa, desconhece a dificuldade que grande parte dos Moçambicanos tem para, diariamente, matar a fome aos filhos, mas em Viena as igrejas estão abertas, as missas sucedem-se, os evangelhos são lidos em voz alta e ninguém ouve, ninguém interpreta a Mensagem... ninguém quer saber...
Moçambique, para a maior parte dos austríacos, é um nome perdido no mapa africano.

Zacarias Mutambe sobrevive à multidão de ignorantes dos países ricos que o oprimem. Sonha em construir um barquinho para se tornar pescador e do seu barco gritar a todos que estão em terra que é preciso resistir ao assombro e ao espanto de Viena monumental.

O rapaz de Karlsplatz dorme na solidão do seu moderno apartamento, a angústia e a tribulação da insastifação constante enfraquecem-no...

Grande é o mistério que separa os Homens, mas maior será o Mistério que os unirá prolongando o amor para lá dos continentes.

Um dia a humanidade rica tropeçará na sua própria opolência e compreenderá a alma daqueles que abraçam, enternecidos e solidários, Zacarias Mutambe e devolvem a nota de dez euros ao rapaz de Karlsplatz...

«Voa gavião, pela tua inteligência, estendendo as tuas asas para o sul.» (Jó, 39;26)

«Abres a mão e satisfazes os desejos de todos os viventes» (Salmos,145;16)

H. Levy

4 comentários:

Anónimo disse...

E nós, daqui de Portugal, de qual estamos mais perto? Ou qual "alcançaremos" com mais vontade?...
Adorei o(s) texto(s), claro, ainda que remetendo para dimensões para as quais esta cabeça não está parametrizada, o que não é de estranhar.
O grafismo, então, está um doce, os verdes são amazonicamente belos e a frase do subtítulo acolhe-nos calorosamente.
Gostei muito, vou ficar à espera dos próximos textos, sim?
Abraços.

Anónimo disse...

Só hoje tive tempo para cá vir apreciar o texto como ele merece e, para não o perder, já levei o link para o 'chuinga'.
Posso só dizer ao professor que (no início) não é preciso o 'jovem' antes do 'rapaz'?...
Um beijo, Henrique, é um prazer ler-te!

Unknown disse...

Dá que pensar....

Unknown disse...

O tempo tem-me faltado para revisitar este blog que juntei aos favoritos.
A qualidade da escrita, associa-se aqui à qualidade humana de quem, limitando-se a mostrar imagens de forma aparentemente imparcial,sabe inteligentemenemente criar nos outros, empedernidos por uma sociedade individualista, laços de Solidariedade