terça-feira, 13 de fevereiro de 2007

Diário I De Amor...


Entrei em casa,a tarde despedia-se do dia e com ela trazia a noite, saudei os gatos que dormitavam , serenamente, por cima dos sófas, encaminhei-me para a cozinha, preparei um chá com aroma oriental, voltei à sala, abri a Bíblia que ando sempre a ler... abri-a onde tinha deixado o marcador com a fotografia da Terra vista do espaço. Li a Epístola de S. Paulo aos Romanos 12;3 - 13;8.


(...)porque pela graça que me é dada, digo a cada um de vós que não pense de si mesmo além do que convém; antes pense com moderação, conforme a medida da fé que Deus repartiu a cada um(...)


O meu coração bateu com mais entusiasmo, a gata veio deitar-se no meu peito e assim fiquei sem saber o que convinha que penssasse de mim, afinal julgar os outros não era conveniente , só pensar em mim, e não mais do que me convém... e o que me convém pensar de mim? E como pensar em mim sem os outros? Tentei pôr moderação no meu pensamento, descobri que se me devolvesse às preocupações filosóficas do quotidiano teria de abandonar grande parte do pensamento que não me convém... senti-me limitado quase sem destino psicológico, banido de mim próprio... abandonado da intimidade do pensamento...

Estonteado fechei os olhos, o ronronar da gata enternecia aquele momento... o que pensar de mim ? Que desejaria S. Paulo que eu fizesse ao mundo confuso, aturdido, vago, replecto, rejeitado, o que era naquele momento o pensamento de mim mesmo ? A gata saltou do meu peito para o chão, o chá arrefecia em cima da mesa, os meus olhos encontraram, novamente,o texto e leram

(...) a ningém devais coisa alguma, a não ser o amor com que vos ameis uns aos outros (...)

Oh! Livro dos Livros... lá estava a resposta ao que me convinha pensar de mim... afinal eram os outros... amá-los a todos, principalmente os desconhecidos, aqueles a quem desconheço o rosto, uma multidão de semelhantes para amar... não mais sentiria tédio, tanta preocupação, tanto amor para partilhar... comecei imediatamente a imaginar os rostos e as necessidades desses meus semelhantes. Reuni os nomes dos países conhecidos de África, o sofrimento e a fome, mas também a alegria daqueles novos amigos que vivem no continente mais belo! Afinal não era difícil amá-los a todos, mesmo os assassinos e ditadores teria de aprender a amar.(Ainda não me sinto preparado para tanto!!) Em breve serei capaz! Julgo! Passei imediatamente para a Ásia e comecei logo a sentir uma imensa ternura por todos os asiáticos, e não são poucos! ... Será que o meu coração aguenta tanto amor, tantos irmãos desconhecidos para amar ?... Serenamente, pensei que também tinha irmãos para amar em países muito ricos, que vivem à custa da miséria e da pobreza dos irmãos pobres da América Latina, da Ásia, de África... teria de amar os ricos habitantes da Europa, dos Estados Unidos, do Canadá, do Japão e da Austrália e ainda os supericos que governam os superpobres...

As imagens de toda a Humanidade faminta, sem água, moribunda, fraca, injustiçada, explorada... exilados, desterrados, passam pelos meus olhos, a elas se juntam as imagens dos também desgraçados dos países ricos e dos ricos e poderosos que os governam na opulência... tudo irmãos para eu amar! Se a estes juntar, ainda, outros, também criaturas como os animais, todos, aquáticos incluidos,todas as criaturas do reino vegetal, aquáticas incluidas, os minerais, os planetas, as galaxias...

A minha alma, o meu coração recusam-se a todos abrager no mesmo Amor ! Invento então um Ser que todos representa, chamo-lhe Deus, decido dedicar-lhe não só a minha vida, o pensamento, a capacidade que tenho de O amar... entrego-Lhe, juntamente com o meu amor, a morte, a minha própria forma de não ser... o esquecimento, a mente ensandecida, os poemas, os beijos, o tédio dos dias, o sorriso que me acontece quando leio S. Paulo num final de tarde em que o chá arrefece e a gata Vicenta volta a adormecer no meu colo.
H.Levy

6 comentários:

Anónimo disse...

Passei por cá, gostei.
Hoje estive cá e gostei mais.
Vou voltar
Bj

Anónimo disse...

Finalmente, pá!! - grande abraço, IO.

Carlos Gil disse...

também gostei :-)

Anónimo disse...

Profunda reflexão - muito optimista! - sobre o amor, acompanhada de amarga lucidez sobre a condição da Humanidade. Sim, é preciso um esforço sobrehumano para amar os responsáveis desta deplorável condição humana. Porém, é um imperativo, quase uma condição "sine qua non" da preservação da nossa condição de Humanos! Jogo de palavras? Não, apenas pensamento partilhado.

Anónimo disse...

Ou, como diria alguém: "porquê o amor a um homem, quando eu busco o amor a um Deus?"

Unknown disse...

Mas que meada (ou será miada?) tão bem enrrrronrrrrronadinha... Muito bem pensado e ainda melhor dito. É bem difícil amar o próximo, mesmo se não forem tantos milhões nem de tão discutível índole! Mas sentir algo, uma entrega semelhante à que descreves, nem que seja por algum tempo,(e sem tirar os pés do chão) já é um feito digno de nota. Tens a minha admiração.